A pavimentação de trechos da BR-319 ignora regras e prevê entrega em 2022
Projeto de pavimentação da BR-319 ignora regras e prevê entrega em 2022
Se de um lado a recuperação da BR-319 entre Manaus e Porto Velho é vista como redenção por parte de seus defensores – em especial a classe política do Amazonas – ao tirar a “metrópole da Amazônia” do isolamento rodoviário com o restante do país, por outra a obra é apontada por ambientalistas e cientistas como uma das mais graves ameaças para a preservação da maior floresta tropical do mundo.
Além disso, a estrada é apontada como um risco para a sobrevivência de dezenas de comunidades indígenas que têm suas terras no entorno. Essas ameaças ocorrem porque a repavimentação tende a acelerar o avanço do “arco do desmatamento” das porções sul e leste da Amazônia para a central e norte.
A interligação rodoviária da capital amazonense com a de Rondônia é uma das principais promessas do governo Jair Bolsonaro para o estado, também bandeira das principais lideranças políticas locais, independente da filiação partidária.
Motivo de cabo-de-guerra entre o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) e o Ministério Público Federal (MPF), o processo de retomadas das obras do chamado “trecho do meio” é alvo constante de questionamentos na Justiça.
Além da falta de garantias da adoção de mecanismos que assegurem a preservação da floresta no entorno, o governo – no afã de cumprir sua promessa assegurando o apoio do eleitorado – pretende executar uma obra que tende a causar ainda mais impactos ao meio ambiente. É o que aponta relatório elaborado pela Rede Brasileira de Especialistas em Ecologia de Transportes (REET).
A partir de análise do edital lançado pelo Dnit, em setembro, que dispõe sobre “Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima) do empreendimento denominado BR 319 – Trecho Porto Velho – Manaus: restauração e melhorias”, a REET detectou que o projeto para execução das obras prevê o aterramento de cursos d’ água (APPs) ao longo da rodovia, ao invés da construção de pontes.
O aterramento aconteceria por meio de terraplanagem e colocação de bueiros nas APPs localizadas no trecho do meio – ou “meião” – que fica entre os Km 250 e Km 655,7, hoje a parte mais precária da BR-319.
Para a REET, além de causar imensuráveis danos ao ambiente, o aterramento não asseguraria a qualidade da obra, que seria totalmente danificada durante o período de chuvas. Pequenos cursos d’água que nos meses de estiagem aparentam não representar ameaças, transformam-se em grandes rios nas chuvas.
“Sendo assim, as intervenções nas áreas de APPs do trecho do meio da BR 319 merecem especial atenção, com um estudo detalhado e alternativas que não somente a terraplenagem e aterramento das mesmas. Esse estudo se faz necessário para que a terraplenagem não seja a única alternativa apresentada com a justificativa de ‘interesse público’”, diz o relatório da REET.
São os processos protocolados pelo MPF do Amazonas na Justiça Federal que ainda retardam o início das obras, amenizando seus efeitos para todo o bioma. A preocupação dos procuradores da República está relacionada com os impactos sociais e ambientais que a recuperação da BR-319 pode ocasionar.
Afinal de contas, a construção de estradas na Amazônia é apontada como a causa principal para o avanço do desmatamento que resulta na grilagem de terras públicas, incluindo as unidades de conservação e terras indígenas.
Mesmo com todas as questões burocráticas e legais envolvidas no processo de retomada das obras, o Dnit afirma que a previsão de conclusão de recuperação do “trecho do meio” é 2022 – o que seria um tempo recorde para um empreendimento de tamanha complexidade.
O temor é de que com o asfalto permanente, nem mesmo as terras indígenas dos mais distintos povos que habitam essa porção do Amazonas fiquem livres de invasões, sobretudo neste momento de desmonte das políticas de proteção ambiental promovida pelo governo brasileiro. Pelo menos seis terras indígenas estão próximas às margens da BR-319: Apurinã do Igarapé São João, Apurinã do Igarapé Tauamirim, Lago Capanã, Ariramba, Nove de Janeiro e Ipixuna.
A se confirmar a expectativa do governo com as datas para a inauguração, as obras da BR-319 podem vir a passar por cima da convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do decreto federal 10.088/2019, que exigem uma consulta prévia aos povos indígenas impactados por obras desta natureza, dando a eles o poder de veto. Segundo o Dnit, dentro do EIA/Rima são elaborados três componentes indígenas referentes a cinco distintos povos.
O possível atropelo por parte do governo federal em não consultar as comunidades tradicionais foi denunciado em agosto ao Ministério Público Federal por meio de carta enviada pelo cacique Valdomiro Farias da Silva Apurinã, do povo Apurinã, cujas terras ficam no município de Tapauá.
“Venho denunciar o genocídio anunciado do povo Apurinã devido à obra realizada pelo governo federal de repavimentação da rodovia BR-319”, começa a carta. O cacique informa que apenas as obras de manutenção da rodovia já foram o suficiente para fomentar o desmatamento, a grilagem de terras e a construção de ramais ilegais em terras dos Apurinãs de outros povos no entorno da rodovia.
De acordo com ele, até mesmo os portais de fiscalização foram eliminados do projeto original por determinação do Dnit. “A BR 319 tem dado acesso às terras indígenas para invasores que ameaçam e intimidam os indígenas como também espalham o coronavírus nas comunidades”, alerta o relato.
Os Apurinã são um entre os 63 povos indígenas que, juntos, somam 18 mil pessoas impactadas pela recuperação da estrada, dentro de um perímetro de 150 km em ambas as margens, segundo um grupo de pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Os cientistas Lucas Ferrante, Mércio Pereira Gomes e Phillip Martin Fearnside assinam uma série de artigos denunciando a ameaça que a BR-319 representa para os indígenas e ao próprio bioma.
Fonte: o ECO
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